sábado, 23 de agosto de 2008

MAGIA

O diabo assusta o homem que assusta o diabo



o encontro



Antes de partir, o babalorixa deixou tudo preparado. Dona Carmem e Neide foram obrigadas a se banharem, juntamente com as jovens abians, futuras iniciantes ou yaôs, banho especialmente,preparado para aquela ocasião.
A velha Carmem a princípio relutara maas com as ameaças de Jeru, inclusive proibindo a sua presença caso não obedecesse, assentiu.
O quarto da jovem iniciante foi preparado dentro dos principios mágicos aprendidos por pai Jeru, e, a própria Mocinha foi mais uma vez borizada, sua cabeça alimentada, especialmente com material vindo da África; seu corpo foi untado com ori,( manteiga,) axé, força, elemento do orixa Oxala, deus da pureza, brancura como as nuvens e o algodão.
Das oito às dez horas daquela noite todos trabalharam febrilmente, apenas a jovem iniciante,
Mocinha sentia indiferença àqueles preparativos, repetindo que não gostaria de vê sua cabeça raspada, seus cabelos mais cortados do que já fôra e assim resmungava continuamente.
O pai-de-santo então lhe acalmou avisando que ela não seria raspada, não iria dançar no barracão, local das festas públicas, nem iria colocar aquelas roupas de negro, como ela afirmava. A jovem acalmou-se.
Jacira, a mãe-criadeira, Josi, o pai-pequeno, cuidaram de todos os detalhes com muita dedicação e afinco enquanto pai Jeru inspecionava e corrigia as falhas que por acaso surgiam.Finalmente, os três foram para o quarto dedicado aos santos, orixa, chamado roncó, iniciando o ritual para a defesa de cada um.
Antes, tomaram o banho de ervas quinada( abô), untaram os corpos com ori, vestiram-se de branco, colocaram os contra-eguns, pulseiras feitas com palha-da-costa presas nos ante-braços, os colares protetores chamados deloguns, guias ou simplesmente fios-de-contas.
Jacira e Josi foram rezados com reza forte, seus corpos fechados, com pó especialmente preparado, considerado mágico, riscados com um punhal de aço e fogo.
Quando chegou a vez de Jeru, o Babalorixa, coube a Jacira, a incubência de fazer o mesmo ritual.
Munidos de sal grosso, velas, dentes de alho roxo, cachaça, pólvora, enxofre, dendê e outros utensílios, além de um gato preto devidamente surrupiado da vizinhança, preso em um saco com o focinho amordaçado para não denunciar as intenções, partiram.
As vinte e duas horas da noite de Todos os Santos o carro amarelo de Jeru, também devidamente preparado, partiu carregando uma carga muito preciosa e com uma tarefaespecial:
encontrar um local apropriado para o cumprimento da missão. O local seria uma mata com água corrente e totalmente deserta de seres humanos. Jeru não estava preocupado por que sabia, tinha certeza que seria guiado por seus orixa. Iria aonde tivesse que ir por que tinha a convicção que na hora exata o diabo estaria esperando por ele.
Na primeira encruzilhada que passaram jogaram sal grosso e três dentes de alho; salvaram Exu das Encruzilhadas e esconjuraram o bicho das trevas, assim o chamavam, enquanto um uivo de um lobo ecoou naquela noite fazendo Josi tremer e se encolher, Jacira rezar o credo e Jeru sentir um calafrio na espinha e dormência na cabeça.
A lua ia subindo, tomando conta da estrada, prateada, o clarão se confundindo com as cores da terra, misturando coisas, criando fantasmas, assustando os assustados daquele carro amarelo, indiferente a tudo seguia seu caminho que se estreitava, o matagal se fechava e as árvores cresciam.
O clarão da lua cheia ajudava a visão de Jeru que seguiu até encontrar o alto de uma colina. Lá embaixo, a lua se espelhava num lago formado por um fio prateado que caia comoos fios de contas de yemanjá. Desceram do carro e seguiram a pé, carregando o material, dividido entre os três. Jeru levava o o saco onde se encontrava a oferenda, o gato preto, seguindo na frente, com os sentidos aguçados, guiado por uma força que lhe deixava totalmente sem a razão. Finalmente encontrou a clareira que estava completamente banhada pelos raios da lua cheia.
Meia noite em ponto o rei das trevas seria invocado para receber a sua oferenda mas teria que prometer deixar a jovem iniciante em paz do contrário tudo seria em vão e Jeru perderia a batalha contra o Zombeteiro.
Vinte e três horas e trinta minutos. Depois de andar em círculo, perto da cachoeira, descobriu uma clareira de forma oval que parecia obra de alguém que ali acampara, com uma espessa ramagem porém os raios daquela lua que lá do alto parecia vigiar, clareavam com bastante intensidade todo o espaço que seria usado para o ritual. Iniciaram os preparativos e apesar dos assovios, cri - cris, estalos e pios de corujas, os três aparentavam tranquilidade, trabalhando em silêncio e compenetrados.
Absortos, não olhavam nem para os lados, nem para tras e nem entre si. Eles não percebiam mas um enorme cão preto seguia todos os seus passos, ora aparecendo, ora sumindo entre as árvores,
Um círculo, o signo de salomão, velas foram acesas, garrafas de cachaça foram abertas, óleo de dendê, sal grosso e os demais ingredientes, postos em torno do círculo, riscado com pólvora e enxofre. Todo ritual é acompanhado por cantos e rezas apropriados sempre puxados por Jeru, e cinco minutos para meia noite tudo estava pronto para a invocação final.
Pai Jeru se posicionou dentro do círculo, de frente para o nascente, com punhal na mão, calça arregaçada, cabeça coberta por um pano branco, peito nu, bastante firmeza nas mãos e na voz, solicitou que Jacira lhe trouxesse o gato preto. Josi , por sua vez posicionou-se pronto para tocar fogo no círculo, assim que chegasse o momento.
O pai de santo segurou o animal com a mão esquerda, sempre cantando, enquanto com a direita segurava firmemente o punhal. Repetinamente, as fôlhas das árvores pararam de bailar, o vento foi dormir, o gato hipnotizado estava preparado para cumprir o seu destino. A lua fincou-se sobre a cabeça de Jeru, o zelador de axé, filho das origens de Angola, para cercá-lo com suas forças e energia, Ela era sua regente força geradora e criativa.
Meia noite. Com toda a força de seu ser o babalorixa iniciou a chamada, a prece brotou das suas entranhas, rasgou chão, mata, água e ceu. As palavras eram anunciadas, a invocação era repetida.
Todos estavam tensos, corpos amortecidos mas as mentes em alerta. O animal, seguro pelas pernas balançava-se no ar, mudo, o seu momento de liberdade. O silêncio era aterrador e havia no ar um cheiro acre, de enxofre queimado. As pernas de Josi não obedeciam a sua mente enquanto suas mãos queimavam ao segurar aquele graveto que ora parecia apagado, ora brilhava como uma pequenina estrela.
Jacira olhava fixa para um determinado ponto, parecendo advinhar que algo sairia de lá. Seu corpo sabia, sua mente lhe dizia, enquanto seus negros olhos grandes mexiam-se com grande intensidade. Pai Jeru reiniciou a invocação: " Senhor das trevas, deus dos caminhos, entradas e saídas, eu vos saudo em nome de toda a sua corte, em nome do Maioral, Satanás e Belzebu .
Eu vos peço que se digne a aceitar esta oferenda e aqui suplico que venhais recebê-la para
dignificar este vosso aflito e humildo servo. Oh, senhor das trevas sem fim, onde quer que estejais eu vos chamo e conclamo , vinde a mim em nome do grande Lúcifer, senhor dos infernos".
Os olhos negros de Jacira cresceram, cresceram, suas órbitas tornaram-se pequenas, miudas para contê-los. O chão tornou-se forno, brasa, fogueira, queimando os pés, tostando seu corpo curtido de negra sofredora, povo pendente, amarras presas.
Seu corpo explodiu, de seu útero surgiu um grito que lhe foi subindo pelas entranhas, sensação de paridez, passou pelo coração acelerado, disparado, sofrido, chegando na garganta seca como o ventre da terra de sua gente,esquálida e rouca, para finalmente explodir no ar, estufando língua, dentes brancos, lábios proeminentes.
A lua assustando-se escondeu seus raios e naquele momento nasceram as trevas. Um animal negro, gigante, peludo, chifres imensos e pernas curtas, olhos, imensas fogueiras, surgiu da visão da negra Jacira, voando sobre o círculo, uivando intensamente ,e com uma só bocanhada arrancou da mão de Jeru, o animal indefeso. O bicho, o demo, assim como surgiu desapareceu deixando no ar o cheiro de couro queimado, chifre, enxofre.
Um baque surdo foi sentido pela terra orvalhada. Era o corpo de Jacira que oscilou, flutuou e bailou no ar para em seguida ser amparado pela mãe terra. Josi, até hoje não sabe se viu ou não viu, Sonho ou realidade... Jeru, era uma estátua posta naquela mata. As árvores voltaram a fazer sombras com o ressurgimento da lua e tudo voltou ao normal naquele mundo de magia. O vento apareceu e timidamente vai mantendo aceso o graveto que ficara jogado com a fuga de Josi.
Da escuridão da mata, surge o cão negro que entra no círculo e com sabedoria empurra com as patas traseiras o graveto que ali se encontra, caindo diretamente no riscado de pólvora, surgindo então um clarão que corre todo o circulo, deixando atras de si uma cortina de fumaça com cheiro de enxofre.
O animal sumira envolvido pela fumaça. Uma chuva fininha, suave e amiga desce para brotar
sementes, acordar corpos atrofiados, presos, amedrontados...
Passaram-se segundos, minutos,horas...Ninguém sabia. Mas para o pai-de-santo foi uma eternidade.
A magia acontecera e o encanto permanecia naquele lugar.































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